O governo federal perdoou quase R$ 50 bilhões de dívidas de empresas no ano passado, concedendo a maior anistia fiscal dos últimos dez anos. Outros R$ 59,5 bilhões foram parcelados em até 15 anos, por meio do Refis, o programa de regularização fiscal, com descontos de multa e juros que chegam a 90%.
A princípio, a medida parece um ato de benevolência do governo com empresas endividadas ou sonegadoras. Porém, na opinião de especialistas em tributação, o Refis é reflexo de uma legislação complexa, de exageros nas multas aplicadas pelos órgãos de fiscalização e da lentidão da Justiça para responder às dúvidas sobre a interpretação da lei.
Maioria das empresas não faz pilantragem
“O Refis é frequentemente criticado por perdoar multa e juros das dívidas. O problema é que, se o governo não fizer isso, as empresas simplesmente não conseguem pagar”, afirmou o advogado Roberto Quiroga Mosquera, sócio do escritório Mattos Filho.
É claro que há casos ilícitos, mas a maioria das empresas não faz pilantragem. Elas buscam um planejamento tributário. Daí surgem questões que são discutíveis, que dependem de interpretação.
Roberto Quiroga Mosquera
É importante esclarecer que nenhum Refis, até hoje, deu desconto sobre o valor principal da dívida. O Refis reduz apenas os juros e as multas, disse Vinicius Jucá, advogado e sócio do escritório TozziniFreire
Maiores juros e multas do mundo
A existência de programas de anistia fiscal como o Refis está diretamente ligada ao tamanho do nosso contencioso tributário. O Brasil está entre os países com as maiores taxas de juros e também com as maiores multas do mundo. Nas esferas estadual e municipal, há casos em que a multa pode chegar a 400%. A dívida torna-se impagável.
Roberto Quiroga Mosquera
O volume total de tributos em litígio, ou seja, em discussão judicial ou administrativa nas esferas federal, estadual e municipal alcança os R$ 3 trilhões, montante equivalente a quase 50% do PIB (Produto Interno Bruto), segundo dados do CNJ (Conselho Nacional de Justiça).
No mundo, a média de litígios tributários é de 1% do PIB, de acordo com a OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico).
Legislação difícil de entender
Segundo os especialistas, uma das razões pelas quais as empresas sofrem pesadas multas é a dificuldade de compreender a legislação, identificar situações em que há incidência de impostos e como calculá-los.
A legislação tributária brasileira é a mais complexa do mundo. Temos uma multiplicidade de tributos. Essa concepção complexa gera um clima de incertezas sobre a interpretação da lei
Raquel Novais, sócia do escritório Machado Meyer
Fiscal interpreta lei e causa confusão
“A fiscalização tem autonomia para interpretar a norma tributária. O problema é que há uma grande divergência entre a interpretação do Fisco e a dos contribuintes. Isso gera muitas contestações nos órgãos administrativos como o Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais). Se a reclamação não é aceita, o caso vai parar na Justiça”, disse Raquel Novais.
O sistema tributário brasileiro é punitivo, confuso e ruim. Faz sentido aplicar uma multa de 75% da dívida, se as regras não são claras?
Vinicius Jucá
“As multas são altíssimas. Imagine se você cobrasse uma multa de 75% em uma relação de consumo, como atrasar o pagamento da conta de luz. Você acha que os tribunais manteriam? Iriam entender que é abusiva”, afirmou Jucá.
Advogados veem exageros na fiscalização
A Receita Federal pode aplicar uma multa de 75% da dívida quando realiza fiscalização em uma empresa e encontra indícios de impostos que não foram recolhidos. A multa pode saltar para 150% da dívida, caso o fiscal avalie que a empresa agiu de má-fé e tentou omitir ou fraudar informações para não pagar impostos ou para recolher valores menores.
Porém, segundo os advogados ouvidos pelo UOL, têm sido recorrentes os casos de autuação agravada, ou seja, com multa de 150%. “Os fiscais têm metas a cumprir. A Receita tem aplicado cada vez mais multas de 150% em casos que não mereceriam receber tal autuação. Isso evidentemente provoca um aumento no volume de litígios tributários”, disse Jucá.
O Fisco tem usado a tecnologia a seu favor para aumentar a fiscalização e evitar a sonegação. Isso é positivo. Mas eu avalio que algumas interpretações da lei tributária pelos fiscais estão mais conservadoras, mais fiscalistas. Basta ver o aumento nas autuações.
Roberto Quiroga Mosquera
A média de autuações nos últimos cinco anos era de R$ 150 bilhões por ano. Em 2017, o volume saltou para R$ 200 bilhões.
Fiscais negam meta para multas
Os fiscais da Receita Federal dizem que são a favor da simplificação das normas tributárias para tornar o sistema mais justo e eficiente.
Sem dúvida, a complexidade da legislação é um problema. Muitas vezes o contribuinte não sabe como cumprir as normas. E a fiscalização também tem dificuldades para aplicá-las, o que acaba gerando contenciosos.
Kleber Cabral, presidente do Sindifisco Nacional (sindicato dos auditores da Receita Federal)
Segundo Cabral, a Receita não está mais “fiscalista”, nem os fiscais estão sendo pressionados a cumprir metas de multas para favorecer o governo e ajudar na redução do déficit fiscal.
“É importante ficar claro que o salário do auditor não aumenta porque ele aplicou uma multa maior em uma empresa. Há um bônus de eficiência institucional, que é fixo em R$ 3.000, independente do volume de autuações.”
Conforme o sindicalista, o aumento do volume de autuações está relacionado à mudança de foco na fiscalização pela Receita Federal. “A prioridade são os grandes contribuintes. Os atos de fiscalização levam em conta o valor esperado de lançamento, ou seja, quanto se imagina que determinada fiscalização vai apurar em autuações”, disse Cabral.
Ainda de acordo com o Sindifisco, as autuações representam, em média, apenas 12% da arrecadação federal. “Essa média tem se mantido constante há anos. As autuações não aumentam a arrecadação. Além disso, a maioria das empresas recorre das multas. Ou seja, esses valores demoram para chegar aos cofres, e muitas vezes os valores das autuações são reduzidos após os recursos.”
Discussões duram uma década, em média
Um processo tributário dura, em média, dez anos na Justiça brasileira. Algumas discussões podem durar décadas, segundo os especialistas. Um dos casos mais emblemáticos é o que trata da incidência do ICMS no recolhimento do PIS/Cofins das empresas.
Após 20 anos nos tribunais, o STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu a favor dos contribuintes, contrariando posicionamento anterior do STJ (Superior Tribunal de Justiça).
Mesmo após a decisão do STF, proferida em março de 2017, o tema continuou pendente por causa da apresentação de embargos declaratórios pela PGFN (Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional). Apenas em setembro de 2018 o caso caminhou para um desfecho, após posicionamento do ministro Celso de Mello sobre o tema.
Dívidas dobram em cinco anos
A lentidão da Justiça e o elevado nível de multas e juros no Brasil fazem uma dívida tributária dobrar de valor no período de cinco anos. “Dos R$ 3 trilhões em contencioso no Brasil hoje, apenas 25% representam imposto devido. O restante são multa e juros”, afirmou Mosquera.
Muitas empresas optam pela adesão ao Refis quando perdem na instância administrativa ou na judicial justamente para conseguir pagar a dívida.
Raquel Novais
Outro fator que encarece os processos tributários é a obrigação de a empresa realizar um seguro ou fiança bancária equivalente a 1% do valor da dívida em discussão. Se a empresa quiser discutir uma dívida de R$ 1 bilhão na Justiça, por exemplo, terá que pagar um seguro de R$ 10 milhões por ano. Se o processo se arrastar por dez anos, serão R$ 100 milhões gastos apenas com seguro.
“Isso sem contar os gastos com honorários e outros efeitos sobre o balanço das empresas. É um dinheiro que a empresa poderia usar para investir na sua produção”, disse Mosquera.
O custo de litigação no Brasil é muito alto. Muitas empresas acabam desistindo de entrar com ação e optam pelo Refis, mesmo sabendo que teriam chances de vitória na Justiça.
Raquel Novais
Limitação do Refis coibiria abusos de empresas
Embora defendam os interesses das empresas, os advogados admitem que há muitas companhias sonegadoras e que se aproveitam da realização recorrente do Refis para postergar o pagamento de suas dívidas tributárias indefinidamente.
“Há o devedor contumaz, e há empresas que usam o Refis para dar fôlego para seu fluxo de caixa. A cada ano ela adere a um novo Refis, que funciona com um analgésico para suas finanças”, disse Jucá.
O Refis é uma ferramenta interessante para o governo recuperar impostos e também para as empresas, por causa dos descontos. Mas a realização de Refis anuais não é bom do ponto de vista educacional. As empresas pensam: ‘Não vou pagar agora. Quando sair o Refis, eu pago’. Elas ficam mal-acostumadas e começam a sonegar com frequência.
Roberto Quiroga Mosquera
O tributarista sugere que o governo faça um Refis mais radical, com isenção total de multas e juros, e depois suspenda o programa. “Teria que ser um Refis com condições muito atrativas, para todo mundo aderir. Só que, depois disso, o governo baixaria uma lei complementar proibindo a realização de outro Refis pelos próximos 15 anos”, afirmou Mosquera.
Fonte: UOL