Estando meu time de futebol mal das pernas, flertando com o rebaixamento, meus contatos mais recentes com o ludopédio têm se dado naquilo que tangencia o Direito Tributário. Não é por estarmos na “pátria de chuteiras” que esse esporte passaria ao largo de uma ou outra canelada fiscal: ao contrário, tem crescido a quantidade de autuações sobre a renda dos atletas (v. a discussão dos direitos de imagem recebidos por meio de PJs), as transferências de jogadores no mercado e, também, a própria renda auferida pelos clubes de futebol profissional.
Em um breve histórico da discussão, o Decreto-lei 5.844/1943 estabeleceu, em seu artigo 28, “a”[1], que estariam isentas do IRPJ as sociedades e fundações de caráter esportivo, afastando, desde então, a incidência desse tributo sobre as associações desportivas. Posteriormente, a Lei 4.506/1964 estabeleceu, em seu artigo 30, condições para o gozo da referida isenção das associações desportivas, exigindo que: a) não se remunerassem dirigentes nem distribuíssem lucros, a qualquer título; b) se aplicassem todos os recursos em seus objetivos sociais; c) mantivesse escrituração regular de suas receitas e despesas; e d) que prestassem ao Fisco todas as informações determinadas por lei e recolham todos os tributos sobre os rendimentos pagos por elas.Diante desse contexto normativo, todas as associações desportivas, amadoras e profissionais, gozavam da isenção do IRPJ até o advento da Lei 9.532/97, que, por meio de seu artigo 82, II, revogou expressamente o artigo 28 do Decreto-lei 5.844/1943 e o artigo 30 da Lei 4.506/1964. Além disso, o artigo 18, IV[2], da mesma lei, estabelecia a revogação da isenção em relação às entidades desportivas de caráter profissional, ressalvando a possibilidade de manutenção no caso de enquadramento nas condições do artigo 12 ou 15 da Lei 9.532/97.
O artigo 12 da Lei 9.532/97 estabeleceu que estivessem abrangidos pela imunidade do artigo 150, VI, “c” da CF/88 as instituições de educação e assistência social sem fins lucrativos, ao passo que o artigo 15 daquela lei estabeleceu a isenção do IRPJ e CSLL para as associações civis que prestem os serviços para os quais houverem sido instituídas e os coloquem à disposição do grupo de pessoas a que se destinam, sem fins lucrativos[3], desde que atendessem às condições do artigo 12, parágrafo 2º, alíneas “a” a “e” e parágrafo 3º, da mesma lei, que tratam sobre remuneração de dirigentes, aplicação dos recursos, escrituração de receitas e despesas, manutenção de documentação contábil, destinação do patrimônio etc.
No ano seguinte, foi promulgada a Lei 9.615/98 (Lei Pelé), que estabeleceu o novo marco legal desportivo brasileiro, revogando a Lei 8.672/93 (Lei Zico), trazendo, entre seus dispositivos, a previsão do artigo 2º, parágrafo único, no sentido de que a exploração e gestão do desporto profissional seriam exercício de atividade econômica, incluindo-se entre seus princípios o tratamento diferenciado em relação ao desporto amador.
Além disso, o artigo 27 da mesma lei estabeleceu que elas deveriam se organizar sob certas formas societárias[4] para participar de eventos profissionais. Logo em seguida, entretanto, foi objeto de alteração, por meio da Lei 9.981/00, que deixou de impor que essas atividades fossem privativas de sociedades civis de fins econômicos, tornando a constituição das entidades arroladas nos incisos uma faculdade da entidade desportiva. Por outro lado, a Lei 10.672/03 introduziu o parágrafo 13º do artigo 27 da Lei Pelé, que estabelecia que a entidade desportiva se equiparasse a uma sociedade empresária notadamente para efeitos tributários, fiscais, previdenciários, financeiros, contábeis e administrativos, independente da forma que estivesse constituída[5].
Em seguida, a Lei 11.345/2006, em seu artigo 13[6], garantiu que as entidades desportivas futebolísticas tivessem a isenção do IRPJ, da CSLL e da Cofins asseguradas (bem como um regime especial do PIS/Pasep) até 2011, mas antes do término de sua vigência a Lei 12.395/2011 alterou a redação do parágrafo 13 do artigo 27 da Lei Pelé, para expurgar a expressão “notadamente para efeitos tributários, fiscais, previdenciários, financeiros, contábeis e administrativos”.
Como se vê desse sucinto relato, trata-se de uma legislação que sofreu diversas alterações em breves períodos de tempo. Vejamos agora como o Carf interpretou-a, nos casos julgados recentemente.
No Acórdão 1402-002.182[7] (Clube Atlético Paranaense), o relator entendeu que o clube auferia receitas da exploração do futebol profissional (publicidade, marketing, bilheteria, direitos de transmissão etc.), com a finalidade de competir profissionalmente. Apesar de reconhecer expressamente a liberdade das entidades desportivas de definir sua organização e funcionamento, não aceitou o uso dessa prerrogativa para se eximir da incidência tributária. Nesse caso, entendeu que as atividades exercidas pelos clubes profissionais se caracterizariam como atividade econômica, não podendo ser enquadradas no instituto da associação civil, que teria finalidade dissociada do lucro.
Essa decisão foi posteriormente revertida pela 1ª CSRF, por meio do Acórdão 9101-003.648[8], que pontuou que o artigo 18, parágrafo único, da Lei 9.532/97 autorizou expressamente a isenção às entidades desportivas de caráter profissional, o que pressupõe também que elas realizem atividades econômicas — caso contrário, o dispositivo simplesmente se confundiria com o que já dispõe o artigo 15 daquela lei. Além disso, pontuou que, mesmo que não houvesse a previsão específica do artigo 18, parágrafo único, da Lei 9.532/97, os clubes de futebol profissional poderiam fazer jus à isenção na condição de associações civis que prestem os serviços para os quais houverem sido instituídas e os coloquem à disposição do grupo de pessoas a que se destinam, sem fins lucrativos. O serviço prestado, no entender do colegiado, se relaciona ao entretenimento fornecido aos espectadores, associados ou não, mencionando a equiparação do espectador-pagante ao consumidor (artigo 42, parágrafo 3º da Lei Pelé).
Por fim, distinguiram, nessas associações civis, os “fins” e as “atividades”: não haveria impedimento para uma associação sem fins econômicos desenvolvesse atividades econômicas para geração de renda, desde que não partilhe os resultados decorrentes entre os associados, destinando-os integralmente à consecução de seu objetivo social — adequando-se à definição de entidade sem fins lucrativos, do artigo 13, parágrafo 3º da Lei 9.532/97[9].
Em outro caso, o Acórdão 1201-002.073 (Santos Futebol Clube) negou provimento ao recurso voluntário, sob argumento de que os clubes de futebol profissional não se enquadrariam no caput do artigo 15 da Lei 9.532/97, por não serem associações civis prestadoras de serviço, e reitera ipsis literisos argumentos já apresentados no Acórdão 1402-002.182. De forma complementar, aduziu que a Lei 11.345/06 (Lei do Timemania), ao conceder expressamente a isenção para as entidades desportivas futebolísticas, estaria consignando a inexistência pretérita dessa exceção à regra de tributação da renda dos clubes.
Acerca da matéria, recentemente a Advocacia-Geral da União emitiu o Parecer Denor/CGU/AGU 4/2013, que cuidou da regulamentação da Lei Pelé, aduzindo que a supressão da expressão “notadamente para efeitos tributários, fiscais, previdenciários, financeiros, contábeis e administrativos” do parágrafo 13º do artigo 27 daquela lei teve como finalidade restringir o alcance da equiparação apenas às finalidades de “fiscalização e controle”. Em razão disso, as entidades de prática desportiva profissionais poderiam adotar a forma jurídica de associação civil, fazendo jus aos benefícios fiscais legalmente instituídos.
Ao tomar ciência do referido parecer e da sua aprovação pelo advogado-geral da União, a PGFN emitiu o Parecer PGFN/CAT 587/2013, vinculando-se às conclusões técnicas lá aduzidas, por força do artigo 2º, parágrafo 1º da Lei Complementar 73/93. Em atenção aos pareceres acima indicados, a Receita exarou a Solução de Consulta Cosit 231/2018, concluindo que passou a ser possível o enquadramento das entidades desportivas profissionais na forma de associação sem fins lucrativos e ao disposto no artigo 15 da Lei 9.532/97, a partir da produção de efeitos da Lei 12.395/2011, e desde que cumpridos os requisitos legais estipulados, além de reconhecer também a isenção no período subsequente à edição da Lei 11.345/2006 (Lei da Timemania).
Por fim, foi julgado favoravelmente ao contribuinte o recente Acórdão 1301-003.869[10] (São Paulo Futebol Clube), no qual prevaleceram as seguintes razões: a) sob uma perspectiva material, aduziu-se que o artigo 27, parágrafo 13º da Lei Pelé estabelecia uma ficção jurídica, por meio da equiparação da associação civil à sociedade empresária, cujo regime jurídico se restringia àquilo que dispusesse a lei, não alcançando o aspecto tributário; além disso, as associações civis não teriam lucro, mas, sim, superávits[11], a despeito de realizar atividades econômicas, não sendo descaracterizadas pelo volume de suas receitas; b) sob uma perspectiva formal, invocou os pareceres exarados pela AGU e PFN, bem como a Solução de Consulta Cosit 231/2018, para afirmar que a própria litigiosidade da questão estaria esvaziada, sem prejuízo das demais razões.
Verifica-se que os precedentes mais recentes são favoráveis ao contribuinte, tanto na Câmara Superior quanto nas Câmaras Baixas do Carf. Da mesma forma, os diversos pareceres e soluções de consulta da própria Receita Federal passaram a ser aplicados nos casos sob julgamento a partir de 2019, indicando um alto grau de probabilidade de a questão ser pacificada no órgão.
*Este texto não reflete a posição institucional do Carf, mas, sim, uma análise de seus precedentes publicados no site do órgão, em estudo descritivo, de caráter informativo, promovido por seus colunistas.
Por Carlos Augusto Daniel Neto – doutor em Direito Tributário pela USP, mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, conselheiro titular da 1ª Seção do Carf, ex-conselheiro da 3ª Seção do Carf e professor do IBDT e Cedes
Fonte: ConJur