Para o bem e para o mal, a reforma tributária tem ocupado um lugar de destaque nas propostas dos candidatos à Presidência da República na corrida eleitoral de 2018. A óbvia necessidade de reequilíbrio fiscal faz com que seja inevitável a discussão sobre como tornar o sistema tributário brasileiro mais eficiente para o Estado e para os cidadãos. Surgem, então, diversas ideias de possíveis soluções, umas mais criativas, outras menos, para que a tributação seja mais simples, justa e, ao mesmo tempo, tenha a capacidade de gerar os recursos necessários para o sustento da máquina estatal e para o investimento público.
No grupo das soluções criativas, certamente está a proposta de graduar a tributação dos bancos de acordo com o custo do crédito oferecido pela instituição financeira, “com alíquotas reduzidas para os [bancos] que oferecerem crédito a custo menor e com prazos mais longos”. Ainda não há informações claras sobre os tributos afetados, mas, pelo que se pode depreender das (poucas) explicações dadas até o momento, a intenção é fazer com que bancos que cobram juros mais altos sofram uma tributação maior e bancos que cobram juros mais baixos tenham uma tributação menor. Uma clara medida extrafiscal, pois utiliza-se um tributo com a função não de pura e simplesmente arrecadar recursos, mas de deliberadamente induzir o contribuinte a adotar uma conduta que supostamente prestigia certo interesse constitucionalmente tutelado e que, no extremo, pode levar até mesmo à redução da arrecadação.
À primeira vista, a ideia pode parecer sedutora. Embora possa haver fundamentos econômicos para o spread bancário praticado no Brasil, fato é que o custo do crédito em nosso país é extremamente alto, com relevantes impactos negativos sobre o acesso das empresas e dos cidadãos aos recursos necessários para o consumo ou para o investimento. Daí que (quase) qualquer iniciativa tendente a reduzir esse elemento do custo-Brasil seja recebida com algum entusiasmo, especialmente quando tal iniciativa, alegadamente, não prejudica o cidadão comum e o seu custo, em tese, recai sobre aqueles que lucram com o referido spread.
A proposta merece ser analisada sob diversos prismas jurídicos e econômicos, que infelizmente não cabem neste artigo. Aqui, nos concentraremos em alguns reflexos jurídicos de dois dos efeitos colaterais que podem resultar do aumento da carga tributária dos bancos de acordo com o nível dos juros cobrados por essas entidades em empréstimos.
O primeiro é o de levar os bancos a simplesmente não conceder empréstimos às pessoas cuja análise de crédito enseje a cobrança de juros maiores. Como se sabe, antes de emprestar dinheiro, os bancos analisam uma série de características do potencial tomador, a fim de identificar o seu perfil econômico-financeiro, definir o grau do risco de inadimplência e, com base nisso (e seguramente em outros elementos), estabelecer a remuneração (juros) que entende apropriada para aquela operação. Resumidamente, os bancos definem quanto devem cobrar para que valha a pena correr o risco de emprestar e não receber de volta – e esse quantum obviamente varia conforme as características de cada tomador. Nesse sentido, se o banco constatar – e conta eles sabem fazer – que o incremento do custo tributário decorrente da concessão de um empréstimo “caro” não compensará o resultado líquido potencialmente auferido com esse empréstimo, a entidade simplesmente não realizará tal operação – e a pessoa que pediu o empréstimo ficará sem acesso ao crédito.
O segundo reside em que, mesmo que o banco decida emprestar para a pessoa do exemplo acima, o custo do empréstimo provavelmente será ainda maior do que aquele que seria exigido caso não houvesse a medida extrafiscal em questão. Se a cobrança de juros maiores faz com que haja uma maior carga tributária, o banco pode simplesmente repassar essa carga adicional ao tomador daquele empréstimo. E esse repasse possivelmente ocorreria por meio – eis um paradoxo – da cobrança de juros ainda maiores. É dizer, o aumento da carga tributária pode levar a um aumento dos juros naqueles empréstimos que envolvam pessoas que, pela análise de risco dos bancos, já teria de pagar mais juros para ter acesso ao crédito.
Esses dois efeitos colaterais retiram o fundamento de legitimidade dessa medida.
A tributação extrafiscal, imprescindivelmente, tem de ser estruturada de uma forma que estimule o contribuinte a adotar práticas que vão ao encontro do objetivo extrafiscal, o que somente pode ocorrer por uma fórmula razoavelmente simples: quanto mais o contribuinte adequar sua atuação ao objetivo, menor deve ser a respectiva carga tributária. Este é um fator intrínseco que conforma a própria noção de extrafiscalidade, que só existe porque se pretende alcançar certo objetivo e para queessa finalidade seja atingida. Portanto, essa tributação apenas terá legitimidade se possuir, ao menos teoricamente, a aptidão de produzir, no contribuinte, o impulso de se adequar àquela finalidade; e isso somente acontecerá se o contribuinte for “premiado” com uma carga tributária menor, caso implemente tal adequação.
Todavia, no caso concreto, um banco poderia ser premiado com uma carga tributária menor não por adequar sua conduta ao objetivo extrafiscal (reduzir os juros cobrados na generalidade das suas operações), mas por restringir essas operações aos casos em que esses juros naturalmente já seriam mais baixos, fechando as portas do crédito às pessoas que não se enquadrem nessa hipótese. Ou seja, em lugar de se estimular o contribuinte a adotar a conduta que justificou a implementação da medida, haveria um estímulo para que o contribuinte adotasse conduta completamente diversa e, ainda assim, obtivesse o mesmo “prêmio” fiscal.
Além disso, considerando que a tributação extrafiscal tem fundamento no desejo de se promover o cumprimento de determinado objetivo, deve-se sempre verificar se a medida extrafiscal é proporcional ao fim perseguido. Para tanto, aplicam-se os notórios exames inerentes ao postulado da proporcionalidade, entre os quais está o que exige que os benefícios potencialmente decorrentes dessa medida sejam qualitativamente superiores aos respectivos custos (proporcionalidade em sentido estrito).
Evidentemente, a tributação extrafiscal não passa nesse teste se tiver a possibilidade de gerar efeitos negativos mais intensos do que seus eventuais efeitos positivos, o que parece ser exatamente o caso da medida em questão. Apesar de ser uma iniciativa tendente a baratear o crédito, ela possui um significativo risco de inviabilizar o acesso de parte das pessoas a esse crédito (caso os bancos decidam não conceder empréstimos a pessoas das quais, pela análise de risco, teriam de cobrar juros mais altos), ou, no melhor cenário, de encarece-lo ainda mais (caso os bancos concedam empréstimos a tais pessoas, mas repassem a elas o custo adicional decorrente do incremento da carga tributária).
É possível que, se e quando tal proposta for melhor detalhada, sejam apresentados antídotos aos problemas apontados acima, cuja legitimidade também deverá ser examinada. Enquanto isso, fica mais um alerta de que soluções hipotéticas simples (ou simplistas?) para problemas reais complexos podem gerar efeitos mais perversos do que aqueles que declaradamente se pretende combater.
Artigo por Diogo Ferraz – Sócio de Freitas Leite Advogados
Fonte: JOTA