O setor de fundos de private equity está em estado de alerta. A Receita Federal começou a autuar gestoras de recursos reconhecidas no mercado que falharam em revelar a identidade de cotistas estrangeiros. Mais de cinco casas já foram multadas, entre elas Victoria Capital, Pátria e Dynamo, e vários outros estão passando por fiscalização, com alto risco de autuação, na visão de especialistas. As multas já aplicadas variam de 35% a 53% e em alguns casos foram cobradas não apenas sobre o ganho de capital de todos os investidores do fundo, mas sobre o principal investido por eles.
A Receita está exigindo que os fundos comprovem que seu cotista é de fato um estrangeiro – e não um brasileiro travestido de não residente – e que portanto faz jus à isenção de Imposto de Renda sobre ganho de capital. Para investidores brasileiros, vale a alíquota de 15%. “Se tivermos que abrir até o último beneficiário de nossos cotistas, acabou a indústria de fundos estrangeiros no país, porque não temos essa informação”, disse o gestor de um grande fundo estrangeiro.
Entre seus cotistas, tanto gestoras locais quanto as internacionais têm fundos de pensão de outros países e outros veículos de investimento estrangeiros, em que na maioria das vezes a identidade das pessoas físicas não é conhecida ou documentada pelo gestor.
Essa nova frente de autuações da Receita se soma a outra que já vinha alarmando os fundos de private equity. Segundo o Valor apurou, há mais de 50 autuações do Fisco por causa da amortização de ágio em empresas compradas pelos fundos. O ágio é a diferença entre o valor pago pelo comprador da empresa e seu valor contábil e reflete uma expectativa de receita futura.
Existe uma previsão legal para que empresas abatam esse ágio de impostos a pagar, mas o Fisco tem feito autuações quando entende que a amortização é indevida. Nesse caso, o alvo das fiscalizações não são os private equities, mas sim aquisições de empresas de forma geral. As compras da operadora de turismo CVC e da administradora de planos de saúde Qualicorp pelo Carlyle, por exemplo, motivaram autuações da Receita. Advent e Pátria também foram multados em casos por ágio. Procuradas, as gestoras não comentaram. Nessa frente, mais antiga, alguns casos já passaram pela segunda instância administrativa, o Carf, e começam a chegar à Justiça.
Mas as autuações sobre os FIPs que não identificaram os cotistas estrangeiros começaram a ocorrer nos últimos meses e ainda estão na primeira instância. Na avaliação de um profissional da área, essa nova frente tem potencial para causar muito mais estragos na indústria, porque questiona a própria forma como o segmento se organiza no país e lá fora e começa a impor penalidades a investidores estrangeiros que aplicaram seus recursos na compra de companhias brasileiras nos últimos anos. Hoje há mais de R$ 100 bilhões em capital de investidores comprometido em fundos de private equity no Brasil e 60% dos recursos vêm de fora.
As multas aplicadas aos fundos de private equity vêm na esteira de uma ofensiva da Receita sobre FIPs suspeitos de serem uma estrutura montada artificialmente por empresários brasileiros interessados em diferir o pagamento de IR ao vender suas empresas. “Mas agora há gestores sérios sendo pegos porque não estavam preparados para mostrar os documentos de todos os seus cotistas”, diz a advogada Marina Procknor, do escritório Mattos Filho.
Desde 2006 os FIPS têm um tratamento fiscal diferenciado para o investidor estrangeiro, com a isenção sobre ganhos de capital. A ideia foi equiparar o tratamento fiscal dos investimentos em empresas de menor porte àquele das empresas listadas em bolsa, que já contava com isenção para estrangeiros. Para ter a isenção, o estrangeiro, sozinho ou em conjunto com pessoas a ele ligadas, tem que ter menos de 40% das cotas do fundo e não pode estar domiciliado em paraíso fiscal. No segundo semestre do ano passado, por meio de uma nova instrução normativa (1729), a Receita passou a exigir a abertura de informações cadastrais dos cotistas até o último beneficiário da cadeia societária, entre outras coisas.
Os advogados que foram consultados ou já atuam nos casos dizem que o grande problema é que a Receita está exigindo um detalhamento de informações que não era usual quando esses fundos foram constituídos. Algumas autuações recaem sobre fundos que já foram até mesmo extintos. “O problema é que a Receita criou um novo entendimento, com base numa instrução, e lavrou autos milionários, tributando tudo e não apenas o beneficiário não identificado”, diz o tributarista Giancarlo Matarazzo, do escritório Pinheiro Neto, que defende alguns fundos autuados. Os advogados dizem que as exigências deveriam passar a valer para frente apenas.
A Receita diz que não existe cerco aos private equities “de verdade”. “Mas é obrigação de um administrador de fundo saber quem é o seu investidor”, diz a auditora Marcia Cecilia Meng, delegada da Demac, a delegacia de maiores contribuintes da Receita em São Paulo. “Posso te afirmar que não fizemos nenhuma autuação de private equities de verdade. Mas autuamos casos em que não conseguimos identificar quem são os cotistas”, completa ela. Segundo Meng, como a obrigação de cadastrar investidores não residentes é dos bancos, em alguns casos, além dos fundos, também têm sido autuadas as instituições financeiras.
“O contribuinte entendia que bastava fornecer as informações do cadastro simplificado da CVM, com apenas uma camada societária identificada. Mas esse entendimento é equivocado”, diz ela. “Tem que haver a possibilidade de a autoridade tributária saber se o investidor é de fato estrangeiro. Desde a década de 90, as instituições financeiras são obrigadas a conhecer seu cliente.”
Ela argumenta que a Receita tem procurado ser transparente e dialogar com o setor. “Chamamos as instituições para demonstrar como deveria ser o cadastro, depois aperfeiçoamos a instrução normativa.”
Roberto Quiroga, do Mattos Filho, vai além em sua interpretação. Ele diz que, em seu entendimento, nada impede que um brasileiro seja o beneficiário final de uma entidade de investimento no exterior, desde que legalmente estabelecido. “Partindo do pressuposto que todo o dinheiro desse investidor foi declarado no Brasil, ele pagará imposto sobre o ganho de capital aqui.” Para a advogada Marina Procknor, outra frente de problema com a Receita poderá vir do fato de que é praxe na indústria de private equity no mundo que o gestor responsável pela carteira participe do veículo de investimento como cotista. Nesse caso, há gestores brasileiros dentro dos veículos no exterior.
O Valor apurou que, no caso da Dynamo, a autuação se deu sobre os ganhos de capital que os investidores do fundo tiveram com a venda da fabricante de relógios Technos, que lançou ações em bolsa em 2011. Tratava-se de um investimento feito em 2008 e o fundo usado terminou em 2013. Ou seja, a autuação foi feita pouco antes do prazo de prescrição de cinco anos. Segundo uma fonte, entretanto, existe a expectativa de que a Dynamo tenha sua autuação extinta porque teria enviado, dentro do prazo legal, informações ao Fisco que comprovariam que seus cotistas são estrangeiros.
Victoria, Pátria e Dynamo não comentaram até o fechamento desta edição.
Procurado para comentar as autuações da Receita, o presidente da Abvcap, associação que reúne os fundos, Fernando Borges, enviou a seguinte nota: “Essa atitude representa uma ameaça real a um setor que investe centenas de bilhões de reais na economia real brasileira e gera milhares de empregos. É legítimo e necessário punir os verdadeiros vilões. Mas a mudança nas regras do jogo cria um nível de incerteza que, na prática, vai afugentar os investidores estrangeiros de longo prazo e penalizar a imensa maioria que faz tudo certo”.
Fonte: Valor Econômico