Reforma tributária tira autonomia dos municípios, diz Cristiane

 
Apresentada inicialmente em 2008, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 233, que estabelece novas regras para o sistema tributário nacional, voltou a ser debatida no Congresso Nacional este ano. O texto tem relatoria do deputado federal Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR) e propõe, entre outras medidas, a fusão de impostos hoje praticados e o aumento gradativo dos impostos sobre a renda e sobre o patrimônio.
 

Para a procuradora do Município de Porto Alegre Cristiane da Costa Nery, a medida prejudica a autonomia dos municípios. Isso porque extingue o Imposto Sobre Serviços (ISS), considerado por ela a principal arrecadação no âmbito municipal, e transfere essa tributação para o Estado – com a criação do Imposto sobre Valor Agregado (IVA) -, que ficará responsável pelo repasse da parte que seria equivalente ao ISS.

 

“É importante frisar: o contribuinte vai continuar pagando o tributo, só que vai pagar para o Estado”, destaca Cristiane. Com a mudança proposta, ela projeta uma situação semelhante a que já existe hoje com os repasses constitucionais da União. “Os municípios vão ficar reféns do repasse de recursos”, avalia.

 

Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, a procuradora defende que, antes de uma reforma tributária com o texto apresentado, “que não está prevendo a questão de acabar com a sonegação, de ter justiça tributária e justiça fiscal”, os parlamentares deveriam se debruçar sobre uma reforma política séria e a revisão do pacto federativo “para ter uma forma justa de repartição e aí se trabalhar com uma justiça tributária para o contribuinte”.

 

Jornal do Comércio – Por que começar a discutir a reforma tributária agora e qual a relação com os municípios?

 

Cristiane da Costa Nery – A PEC da reforma tributária é bastante antiga, foi apresentada em 2008 como PEC 233, e agora foi apresentado um texto preliminar pelo deputado federal Luiz Carlos Hauly que propõe a reforma tributária no País. De inovação, esse texto propõe uma simplificação do sistema tributário, ou sustenta que há uma simplificação, propõe a extinção de alguns tributos com a criação de novos e agregar alguns já existentes em um único.

 

Para os municípios, a proposta prevê a extinção do ISS, que passa a ser incorporado ao Imposto sobre Valor Agregado, no âmbito do Estado e que não existe ainda, vai ser criado. Este IVA vai abranger vários outros, como o ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços), o PIS/Cofins (Programa de Integração Social/Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social) e o ISS, por exemplo. Então o ICMS também vai ser extinto. Só que o Estado ganha o IVA em substituição. Já o município perde o ISS e não ganha nenhum outro tributo de capacidade arrecadatória própria. Fica só com IPTU (Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana) e ITBI (Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis). Isso, para os municípios, é gravíssimo, porque perde autonomia sobre esse tributo, tem uma perda financeira em investimento com recursos próprios, fiscalização especializada etc., e mais, tem muitos municípios que a arrecadação de ISS é superior à arrecadação de IPTU. Isso vai gerar uma perda financeira enorme e de forma imediata, ainda que ocorra um repasse pelos estados, o município vai perder o comando do seu imposto, porque ele vai ter que ser repassado.

 

JC – Como vai impactar nos municípios a retirada do ISS? 

 

Cristiane – Com a Lei nº 157, do final do ano passado e que entrou em vigor em maio deste ano com a derrubada do veto do presidente, muda a distribuição do ISS em compras com cartões de crédito e débito, que era tributado na sede da empresa do cartão de crédito. Porto Alegre, por exemplo, ganhava com toda a tributação de ISS do Banrisul, porque a sede é aqui. Com a alteração da lei, passa a ser tributado no município que tem a maquininha, o tomador de serviço, a loja que está vendendo. Toda a tributação do Banrisul vai passar a ser dividida por todos os municípios que têm a maquininha do Banrisul. Porto Alegre imediatamente perde, mas também ganha com tributação das outras bandeiras que não têm sede aqui, mas são usados aqui. É um tributo importante, foi uma luta dos prefeitos para redistribuir. Aí vem uma reforma que retira da esfera de capacidade tributária própria do município. O imposto não deixa de existir, isso é importante frisar: o contribuinte vai continuar pagando o tributo, só que vai pagar para o Estado, dentro do IVA. E o Estado vai repassar o que é cabível de ISS aos municípios, só que vai cobrar conforme a sua possibilidade de cobrança. Hoje temos no município de Porto Alegre, por exemplo, uma equipe de auditores fiscais especializada em cobrança de ISS. O Estado não dispõe desse profissional e não vai priorizar a cobrança de um imposto que não vai ficar no seu caixa.

 
Acontece o mesmo com o IPVA (Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores), que é repassado para os municípios que têm a placa do carro naquela localidade, mas o Estado não prioriza a cobrança desse imposto. Os municípios vão ficar reféns do repasse de recursos. Já se é refém dos repasses constitucionais da União e dos estados. Cada vez mais se enxuga a capacidade tributária.
 
 

JC – No repassar, União e Estado retêm uma parte? 

 

Cristiane – O que é referente a ISS vem para o município, a princípio. O texto preliminar dessa proposta trabalha com a ideia de simplificação do esquema tributário que hoje é complexo, mas na verdade mantém a complexidade. É muito parecido com o Simples Nacional. Hoje a União arrecada e a empresa que opta por esse sistema paga 2% referente a ISS, dentro dos impostos que estão agregados, e a União repassa para os municípios. Dentro desse exemplo, falando em cobrança, em Porto Alegre, trabalhamos com um limite para ajuizamento de execução fiscal em torno de R$ 6 mil – abaixo desse valor, o custo tende a ser maior que o valor a receber, então adotamos outros meios de cobrança. O limite de cobrança de execução da União é bem mais alto: de R$ 20 mil. Então a União não vai cobrar esse valor de ISS que está ali embutido porque para eles é um valor muito baixo. Aí o município tem que fazer um convênio com a União, para que ela repasse quais são os contribuintes que deixaram de pagar o Simples Nacional, e que portanto se possa cobrar judicialmente pelo município, porque a União não vai fazer. Nesse caso, para o contribuinte continua existindo, o município perde a esfera de comando do tributo e ainda fica esperando a União nos informar para ver o que vale a pena cobrar ou não. Outro aspecto é a demora. O ISS é um tributo que se demorar para fazer a cobrança, a empresa já fechou as portas, foi embora, e o município perdeu. Então se tem por hábito, vencido o prazo e feita mais uma cobrança sem pagamento, executar a empresa, que é para não perder a capacidade de cobrança.

 
Se demorar nesse repasse de informação, por exemplo, já se perdeu uma grande chance de reaver em cobrança judicial.
 
 

 

JC – Considerando o Interior, como fica a chance de conseguir se articular melhor dentro dessa proposta? 
 

Cristiane – Diminui muito. Aqueles de pequeno porte não têm estrutura hoje, como as capitais têm, para cobrança de ISS, por exemplo. Muitos desses municípios estão vendo essa proposta como benéfica, porque alguém vai repassar um dinheiro alguma hora. Mas, se pensar sob esse aspecto, a perda de autonomia daquele município vai ser cada vez maior, ele vai ter cada vez menos condição de se manter e cada vez mais estará lá em Brasília, com o pires na mão, pedindo repasse porque não vai ter condição de se sustentar.

 
 
 

JC – Hoje, a senhora avalia que existe essa autonomia aos municípios?

 

Cristiane – Os municípios têm, constitucionalmente falando, autonomia. Mas quando se vislumbra que o município tem maior número de competências e cada vez mais necessidade de prestação de serviços sem a devida contraprestação financeira, se vê que a autonomia fica muito no papel. Pela Constituição de 1988, várias questões foram municipalizadas, como saúde, educação e assistência social. Quantos prefeitos estão batendo na porta do presidente da República para pedir linhas de crédito, financiamentos internacionais, para pedir alguma forma de financiar suas políticas públicas… Antes de se fazer uma reforma tributária, que não está prevendo a questão de acabar com a sonegação, de ter justiça tributária e justiça fiscal, seria o caso de fazer uma reforma política de verdade e rever o pacto federativo, que efetivamente privilegie a localidade, a comunidade que tem que prestar o serviço público. Isso vai obviamente bater na repartição do bolo tributário, que tem que ser revisto. Hoje o município fica com 18% do que é arrecadado em impostos, o resto fica com a União e os estados para redistribuir, e os municípios é que tem que prestar esses serviços básicos. O pacto federativo tem que ser revisto, para ter uma forma justa de repartição e aí se trabalhar com uma justiça tributária para o contribuinte. Porque o contribuinte não acha justo o tributo. Para achar que realmente tem que pagar aquele imposto, ele precisa saber que está revertendo em serviços. A revisão desse pacto federativo e da repartição do bolo tributário no País têm que andar juntas, se não a reforma tributária não vai ser efetiva.

 
 

JC – Como se faria uma revisão do pacto federativo?

 

Cristiane – Tem que ser por ação do Congresso Nacional, com uma emenda constitucional, porque os repasses são previstos na Constituição.

 
 

JC – Considera a reforma que está sendo recuperada agora adequada? 

 

Cristiane – Com esse texto preliminar do deputado Hauly, não. Eu, como procuradora do Município, vejo um prejuízo enorme. E mais uma vez vamos retirar poder local para concentrar na União e nos estados, e aí os municípios ficam cada vez mais combalidos financeiramente, sem recursos para políticas públicas, e aí falta vaga em hospital, em creche, em escola. É um reflexo enorme para a população, que não pode ficar alheia a essa discussão. No momento que se tem uma reforma tributária que privilegia a União, é óbvio que vai ter reflexo na vida de cada um, porque o município que presta os serviços. É essa repartição tributária que temos que cuidar, porque vai refletir na prestação dos serviços. Não há nenhuma avaliação se é esse o texto que vai vingar, mas é um texto preliminar muito ruim, na minha visão de município.

 
 

JC – A senhora falava do diálogo com a população. Como se faria esse argumento? Por outro lado, uma reforma tributária que equilibre a repartição dos impostos e repasse uma cota maior aos municípios, pode vir a gerar maior prestação de serviços? 

 

Cristiane – Penso que sim. Sempre acredito que as pessoas que ocupam cargos públicos estão ali capacitadas e com intenção de bem aplicar os recursos em prol da população. Uma reforma tributária que tenha uma melhor justiça fiscal, que equalize a questão da distribuição de recursos e que privilegie os municípios que são os grandes prestadores de serviços públicos podem resultar em benefício direto para a população. E a população tem que estar atenta, porque é uma questão de cidadania. É na prefeitura que a pessoa vai bater na porta e dizer que “na minha rua o esgoto está aberto”, “na minha rua tem buraco”, “no meu posto de saúde não tem médico”. É onde as pessoas vivem que tem que estar adequado. Porque estado e União são ficções jurídicas, não se tem concretude nos entes. Obviamente são importantíssimos na Federação, mas têm atuações mais distantes das questões básicas que a população precisa.

 
Tanto é que o orçamento do município é o único debatido na Câmara com audiências públicas, com a possibilidade de emendas, de priorização de aplicação. Esse sentimento de localidade que a Constituição de 1988 trouxe, que deu autonomia para os municípios para que o interesse local seja privilegiado, é o sentimento que a população tem que ter. Qual o meu interesse? É que a minha cidade esteja condições para que eu sobreviva, consiga me mover, ter saúde… Quem vai prestar isso de forma básica e em primeiro lugar é o município. Nesse aspecto a população tem que enxergar que a reforma tributária pode impactar, e que a repartição e repasse de tributos constitucionais também pode impactar.
 

Fonte: Jornal do Comércio

 

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